A nova série da Netflix apresenta um herói do quotidiano, o arquétipo do funcionário corporativo que seguiu as regras à risca durante toda a sua vida. Kim Nak-soo (interpretado por Ryu Seung-ryong) é um homem que construiu meticulosamente a vida que a sociedade define como bem-sucedida, apenas para ver todo o seu mundo desmoronar num instante. A sinopse oficial acompanha “um homem de meia-idade que, outrora realizado como gerente corporativo, embarca numa jornada de autodescoberta após uma queda rápida, reaprendendo o que lhe traz verdadeira alegria”. Isto prepara o cenário para uma história que não é sobre a busca pelo sucesso, mas sobre a sua redefinição após ter perdido tudo.
A narrativa mergulha numa ansiedade moderna e generalizada, especialmente palpável na classe média, onde o sucesso é percebido como frágil e a identidade, muitas vezes ligada a uma carreira, pode ser arrancada sem aviso prévio. A sinopse usa repetidamente frases como “perde tudo o que um dia valorizou num instante” e “uma queda rápida”, sublinhando a natureza abrupta da crise do protagonista. A sua queda é ainda mais chocante porque ocorre após 25 anos de lealdade e promoções constantes, o que sugere que o seu infortúnio é imerecido. Desta forma, a série confronta a ideia de um contrato social que promete estabilidade em troca de trabalho árduo, um pacto que parece cada vez mais quebrado em muitas economias contemporâneas. A jornada do Sr. Kim torna-se, assim, um veículo para as ansiedades do público sobre estabilidade e autoestima. No fundo, a série levanta uma questão existencial que o próprio ator Ryu Seung-ryong articulou: “Viver na sua própria casa em Seul e ter um cargo de gerente corporativo garante a felicidade? Se perder tudo, isso significa infelicidade?”.
O Retrato de um Homem na Corda Bamba: Trama e Personagem Central
Antes da sua queda, Kim Nak-soo encarna o ideal do sucesso coreano. Ele é um gerente de departamento com 25 anos de experiência numa grande corporação, reconhecido pelas suas habilidades excecionais de vendas e por nunca ter perdido um ciclo de promoções. Possui um apartamento de primeira em Seul e mantém uma família com uma “esposa sábia e um filho inteligente”, o que o torna um “ícone do sucesso”. No entanto, esse equilíbrio quebra-se quando “as coisas começam a desmoronar, tanto no trabalho como em casa”, e ele começa a “perder o pé” em ambos os âmbitos. Não se trata de um único evento catastrófico, mas de uma erosão gradual e, portanto, mais realista, do seu mundo.
O núcleo da trama é a sua subsequente jornada de redescoberta, descrita como “comovente e bem-humorada”, uma busca por “resiliência e sobrevivência” que provoca “tanto lágrimas como risos”. O objetivo final é que ele encontre o seu “verdadeiro eu, não mais definido pelo seu trabalho”. Uma característica crucial que adiciona complexidade ao personagem é o seu arquétipo como kkondae, um termo coreano para descrever um adulto antiquado e autoritário. Essa visão de mundo rígida é provavelmente um fator que contribui para a sua queda e um obstáculo importante no seu caminho para a reinvenção. Ryu Seung-ryong descreve a sua interpretação deste arquétipo como a de um “palhaço: divertido, mas não odioso”, um homem que tenta encontrar valor em coisas insignificantes de uma maneira que resulta “ao mesmo tempo engraçada e triste”.
A estrutura da trama — 25 anos de sucesso seguidos por uma queda repentina — funciona como uma crítica deliberada a uma cultura corporativa que valoriza a utilidade de um funcionário acima da sua humanidade. A identidade de Kim Nak-soo está tão entrelaçada com o seu título profissional que a sua perda precipita uma crise existencial total. A série sugere que a “vida de sonho” oferecida pelo sucesso corporativo é uma gaiola dourada que impede a verdadeira autodescoberta. A narrativa implica que, durante 25 anos, o Sr. Kim não viveu a sua própria vida, mas a que lhe foi prescrita pela sua empresa e pela sociedade. A sua “queda”, portanto, não é apenas uma tragédia, mas uma libertação dolorosa, porém necessária, posicionando a série como um alerta sobre os perigos de permitir que a profissão se torne a totalidade da identidade de uma pessoa.
Ryu Seung-ryong: O Regresso do Titã à Televisão
A série marca um grande evento televisivo: o regresso de Ryu Seung-ryong à televisão por cabo após uma ausência de 15 anos, durante a qual se consolidou como uma superestrela do cinema. A sua filmografia inclui sucessos de bilheteira como Milagre na Cela 7, O Almirante: Correntes Furiosas e, especialmente, Extreme Job, o segundo filme de maior bilheteira da história da Coreia do Sul. Ele é o primeiro ator coreano a estrelar quatro filmes que ultrapassaram 10 milhões de espectadores cada, o que cimenta o seu poder de bilheteira e ressalta a importância do seu regresso ao pequeno ecrã.
O regresso de Ryu não é um passo atrás, mas um reflexo da mudança de paradigma na indústria do entretenimento global. As séries de alto orçamento e focadas nos personagens em plataformas globais como a Netflix oferecem agora o prestígio, a profundidade criativa e o alcance internacional que antes eram exclusivos do cinema. A sua participação eleva a série e sinaliza que as histórias e atuações mais convincentes estão cada vez mais no “pequeno ecrã”, validando os K-dramas como uma forma de arte de primeira linha mundial.
Ryu oferece uma perspetiva nuançada sobre o seu personagem, Kim Nak-soo, a quem descreve como uma figura de “tragicomédia, ao mesmo tempo ridícula e que desperta simpatia”. Ele insiste que, embora o personagem seja um kkondae, é “alguém que não se consegue odiar” porque possui um “senso saudável de responsabilidade” que explica o seu comportamento. Essa nuance é fundamental para o apelo do personagem. O ator também admite que o papel o fez refletir sobre a sua própria posição como um dos atores mais velhos no set, e a dificuldade de equilibrar generosidade e criatividade sem ser percebido ele mesmo como um kkondae.
A Visão Criativa: Desafiando o Significado da Felicidade
À frente da série está o diretor Jo Hyun-tak, cuja aclamada filmografia inclui sucessos como SKY Castle, uma produção também conhecida pela sua afiada sátira social. Essa experiência prévia credencia-o para lidar com temas complexos e de grande relevância social. Um objetivo central para o diretor é explorar e diminuir o fosso geracional da Coreia. Jo Hyun-tak afirma: “Existe a sensação de que as gerações estão desconectadas. Eu queria criar uma história que ajudasse a diminuir essa lacuna”. Ryu Seung-ryong ecoa esse sentimento, esperando que a obra “possa ampliar naturalmente o entendimento mútuo entre as gerações”. O diretor elogiou a personificação do personagem por Ryu, afirmando que a sua atuação foi “tão completa que era difícil distingui-lo do personagem”.
A Vida de Sonho do Sr. Kim pode ser interpretada como uma sucessora temática do grande sucesso anterior de Jo Hyun-tak, SKY Castle. Enquanto SKY Castle satirizava as ambições implacáveis da elite para que os seus filhos ingressassem nas melhores universidades, esta nova série examina a vida que vem depois de alcançar esse “sucesso”: o vazio e a pressão de manter esse status na meia-idade. É uma crítica longitudinal do mesmo sistema de valores sociais, visto de uma fase diferente da vida. Jo Hyun-tak continua assim o seu exame das pressões da sociedade coreana moderna, mudando o seu foco da “chegada” para o “estar lá”, e questionando se o destino valeu a pena a jornada.
A filosofia do diretor é que, ao explorar profundamente um “caso especial” — o do Sr. Kim —, a série pode “representar toda a gente”. A história não é apenas sobre um gerente de 50 e poucos anos, mas apresenta-se como uma narrativa que abrange gerações, onde os espectadores podem ver “o seu próprio futuro ou passado”. A visão partilhada dos criadores é usar a história para que o público reflita sobre os seus próprios valores. As declarações de Ryu sobre perder tudo para encontrar a “felicidade genuína” e refletir sobre “o que damos como garantido” são fundamentais aqui. A série foi projetada para iniciar uma conversa sobre o que realmente significa “viver bem”.
Do Fenómeno da Web para o Ecrã Global: Origens e Autenticidade
A série é baseada num webcomic de sucesso intitulado Seoul Jagae Daekieob Danineun Kim Bujang Yiyaki. A sua popularidade prévia é notável: acumulou 10 milhões de visualizações na comunidade Naver e vendeu 300.000 cópias. Esse sucesso preexistente indica uma história com uma ressonância comprovada. Um detalhe chave que confere autenticidade é que o autor original, Song Hee-gu, baseou-se nas suas próprias experiências a trabalhar numa grande corporação, o que ancora a história no realismo. O diretor Jo Hyun-tak destacou que o autor participou ativamente da produção, contribuindo com ideias e juntando-se à equipa no set.
A decisão de manter o longo e descritivo título original é uma escolha artística deliberada que funciona como uma peça de metanarrativa. O título literal, “A história do gerente Kim, que é dono da sua casa e trabalha para uma grande empresa em Seul”, apresenta a vida do protagonista como um currículo de conquistas sociais, convidando imediatamente o público a questionar a substância por trás dos rótulos. É uma subversão inteligente dos títulos muitas vezes poéticos dos K-dramas, usando uma linguagem burocrática para criticar uma vida burocrática. O diretor Jo Hyun-tak reconhece que o título pode parecer “estranho”, mas explica que “o próprio título desperta curiosidade e perguntas” sobre o que o sucesso realmente significa. Funciona como a tese de toda a série: o título é o problema que a trama se propõe a resolver.
A Engrenagem Familiar e o Espelho Geracional
A dinâmica familiar é fundamental para a trama, não apenas um pano de fundo. A história não trata apenas da crise de um homem, mas de como toda uma unidade familiar reage quando os seus alicerces são abalados. A personagem de Park Ha-jin, a esposa interpretada por Myung Se-bin, não é uma figura passiva. Após 25 anos a apoiar o marido, ela decide perseguir os seus próprios sonhos e torna-se corretora de imóveis justamente quando a posição do seu esposo se torna precária. A sua jornada de transformação oferece “inspiração e perspetivas com as quais é fácil identificar-se”. Enquanto isso, o filho, Kim Su-gyeom, interpretado por Cha Kang-yoon, atua como a voz da geração mais jovem, observando os seus pais a navegarem pela crise e destacando as diferenças geracionais em valores e comunicação. A atriz Myung Se-bin destacou que, como mãe na ficção, se concentrou em “aliviar a tensão entre pai e filho e abrir a comunicação”. O diretor também mencionou que o drama aborda “11 crises de quase morte que a família enfrenta”, sugerindo uma série de desafios crescentes que testarão os seus laços.
Este subenredo familiar é crucial porque desconstrói o papel tradicional do patriarca masculino como único provedor. À medida que a identidade profissional do Sr. Kim desmorona, a da sua esposa emerge. Essa inversão de papéis é um comentário sobre a evolução da dinâmica familiar e dos papéis de género na Coreia moderna. A crise dele torna-se o catalisador para o empoderamento dela. A série, portanto, argumenta que a “vida de sonho” construída sobre um único provedor é intrinsecamente instável. A verdadeira estabilidade vem de uma estrutura familiar mais moderna e equitativa, onde os membros individuais têm as suas próprias fontes de realização e valor.
Um Convite ao Riso e à Reflexão
Em última análise, A Vida de Sonho do Sr. Kim apresenta-se como uma mistura única de “humor e emoção crua” e uma combinação de “sátira, calor e visão familiar”. O seu objetivo é fazer o público “rir num momento e comover-se até às lágrimas no seguinte”. O objetivo final dos criadores é oferecer mais do que um simples espetáculo; é um “olhar caloroso e honesto sobre o que significa ser humano”. A série está posicionada como uma obra que trará “consolo para aqueles nas suas jornadas pessoais” e provocará uma reflexão significativa. Ao seguir o caminho de autodescoberta do Sr. Kim, a série lança ao público uma pergunta inevitável: “Como é a minha vida de sonho?”. Com a sua temática universal e a sua abordagem nuançada, A Vida de Sonho do Sr. Kim está preparada para ressoar com uma audiência global que enfrenta questões semelhantes sobre sucesso, felicidade e o verdadeiro significado de uma vida bem vivida.

