“A Vizinha Perfeita”, novo documentário na Netflix: A anatomia de uma tragédia através da lente policial

A fragilidade da convivência

A Vizinha Perfeita
Martha O'Hara
Martha O'Hara
Editora da MCM: arte, espectáculos, natureza e cinema.

Num bairro suburbano de Ocala, na Flórida, no complexo de apartamentos Quail Run, a vida decorria com a aparente normalidade de qualquer comunidade unida. Famílias, crianças a brincar ao ar livre num terreno baldio e os atritos quotidianos da convivência pintavam um cenário familiar. No entanto, uma disputa aparentemente menor, centrada nesse mesmo local de brincadeira, tornou-se o epicentro de uma cadeia de acontecimentos que viria a devastar a comunidade e a expor profundas fissuras sociais.

Um novo e aclamado documentário, “A Vizinha Perfeita”, realizado pela premiada cineasta Geeta Gandbhir, mergulha no coração desta tragédia. A produção não é uma narrativa tradicional, mas sim uma reconstrução imersiva e crua dos factos, contada quase na sua totalidade através de uma perspetiva única: a das câmaras corporais da polícia. O filme oferece-nos um olhar sem filtros sobre como um conflito do dia a dia pode escalar até se transformar num ato de violência fatal, revelando as consequências do preconceito, do medo e das falhas sistémicas.

O documentário levanta uma questão fundamental: como é que se passa de viver ao lado de alguém, que é apenas um vizinho, para levantar uma arma e cometer um ato tão horrível? Esta interrogação serve como o núcleo narrativo do filme, guiando o espetador através da anatomia de uma tragédia que ecoa muito para além dos limites de um pequeno bairro da Flórida.

Crónica de uma hostilidade crescente

O documentário narra o conflito crescente entre Ajike “AJ” Owens, uma mãe negra de 35 anos, e a sua vizinha branca, Susan Lorincz, de 58. O que começou como uma disputa de vizinhança transformou-se num padrão de assédio implacável. Durante um período de mais de dois anos, as autoridades responderam a pelo menos meia dúzia de chamadas relacionadas com o conflito entre ambas, estabelecendo um historial documentado de tensão prolongada.

O filme detalha o comportamento de Lorincz, que fazia constantes chamadas para a polícia a queixar-se dos filhos de Owens e de outras crianças do bairro que brincavam num campo perto da sua casa. Este assédio incluía o uso de insultos racistas, um facto que a própria Lorincz admitiu mais tarde aos detetives. A hostilidade era tão conhecida na comunidade que as crianças se referiam a ela como “a Karen”, um termo popular para descrever uma mulher branca que usa o seu privilégio para impor a sua vontade.

A narrativa do documentário culmina na noite do desfecho fatal, reconstruída meticulosamente através das gravações oficiais. A sequência de eventos mostra Lorincz a confrontar os filhos de Owens enquanto estes brincavam. Durante o confronto, Lorincz atirou-lhes um patim, atingindo uma das crianças no pé, e também brandiu um guarda-chuva na direção de outra.

Quando as crianças contaram à mãe o que tinha acontecido, Ajike Owens, desarmada e acompanhada pelo seu filho de 10 anos, foi à porta de Lorincz para a confrontar. A resposta de Lorincz foi disparar um único tiro com uma pistola de calibre .380 através da sua própria porta, que estava fechada e trancada. A bala atingiu Owens na parte superior do peito, ferindo-a de morte. O documentário captura o caos e a dor imediatos, incluindo o grito lancinante do filho de Owens, “Dispararam na minha mãe!”, e a tentativa desesperada de um vizinho de lhe fazer manobras de reanimação cardiopulmonar.

Uma cinematografia da evidência

A característica mais distintiva e radical de “A Vizinha Perfeita” é a sua abordagem formal. O filme é construído quase inteiramente a partir de material de arquivo oficial, prescindindo de entrevistas, narradores ou recriações dramáticas. As fontes principais são as gravações das câmaras corporais da polícia, as chamadas para o 911, os vídeos das salas de interrogatório e as imagens das câmaras dos veículos de patrulha.

Esta escolha estilística reflete uma filosofia cinematográfica clara por parte da realizadora Geeta Gandbhir: a imersão total do espetador. O seu objetivo era “simplesmente viver nas gravações da câmara corporal da polícia” para que o público se pudesse sentir “inserido na comunidade” e chegar às suas próprias conclusões sem a orientação de uma voz-off. Este método, conhecido como “mostrar, não contar”, confia na inteligência e na empatia da audiência para processar os factos tal como se desenrolaram. A realizadora considerou que, por se tratar de “imagens institucionais”, o público “nunca duvidaria da sua autenticidade”, uma vez que não havia um repórter no terreno que pudesse introduzir um viés.

O processo de montar esta narrativa foi um desafio técnico e editorial monumental. Gandbhir e a sua equipa, incluindo a editora Viridiana Lieberman, tiveram de organizar e sincronizar “horas de filmagens de câmaras corporais da polícia que chegaram desorganizadas” para construir uma cronologia coerente e devastadora. O resultado transforma o espetador numa testemunha direta. Ao adotar o ponto de vista da câmara policial, a audiência experiencia a tensão das disputas, a frustração dos vizinhos, o caos da cena do crime e a angústia da comunidade de uma forma visceral e imediata. A experiência é tão imersiva e impulsiva que parece um thriller da vida real.

A motivação por trás da câmara: luto, propósito e perspetiva

A força motriz por trás de “A Vizinha Perfeita” é profundamente pessoal. A realizadora Geeta Gandbhir tinha uma ligação direta à tragédia: Ajike Owens era a melhor amiga da sua cunhada. Gandbhir descreveu o projeto como um esforço para transformar o luto em propósito e para honrar o legado de Owens e da sua família. Esta ligação pessoal foi o catalisador de um projeto que começou não como um filme, mas como um ato de ativismo. Preocupados que a lei “Stand Your Ground” da Flórida pudesse impedir a detenção de Lorincz, Gandbhir e o seu sócio, o produtor Nikon Kwantu, viajaram para a Flórida para começar a filmar e a “fazer barulho”.

O projeto não teria sido possível sem o consentimento e o mandato moral da mãe de Ajike, Pamela Dias. Foi ela quem autorizou o uso público das imagens, com a esperança de que o mundo testemunhasse o que aconteceu à sua filha. Depois de ver o filme terminado, a sua resposta a Gandbhir foi uma afirmação poderosa: “Sim, o mundo precisa de saber o que aconteceu à minha menina”. Esta decisão, inspirada no legado de Mamie Till, a mãe de Emmett Till, que insistiu num caixão aberto para que o mundo visse a brutalidade infligida ao seu filho, deu aos cineastas a coragem de mostrar os momentos mais difíceis e traumáticos da história. A equipa de produção foi reforçada pela participação da reconhecida jornalista Soledad O’Brien como produtora executiva, conferindo um selo de rigor jornalístico ao projeto.

A lei “Stand Your Ground” e as falhas do sistema

“A Vizinha Perfeita” transcende a crónica de um crime para se tornar um exame incisivo das leis “Stand Your Ground” da Flórida e das suas consequências devastadoras. A lei, que permite o uso de força letal se uma pessoa acreditar razoavelmente que é necessário para prevenir a morte ou um grande dano corporal, sem o dever de recuar, foi o pilar da defesa de Susan Lorincz. O documentário sugere que a própria existência desta lei pode fomentar uma mentalidade de “disparar primeiro, pensar depois”, especialmente quando combinada com preconceitos raciais e o fácil acesso a armas.

A evidência de que Lorincz tinha pesquisado estas leis online antes do tiroteio aponta para que a sua ação não tenha sido uma reação de pânico espontânea, mas sim uma decisão enquadrada num sistema legal que ela acreditava que a protegeria. O filme expõe também uma falha sistémica por parte das forças da ordem, que foram chamadas repetidamente mas não conseguiram mitigar uma ameaça conhecida e crescente. Da perspetiva da realizadora, a polícia tratou Lorincz como um simples “incómodo” em vez de um “perigo”, apesar do seu comportamento errático, das suas ameaças e do seu assédio às crianças.

Estes temas convergiram no julgamento de Lorincz, onde duas narrativas opostas se confrontaram. A defesa retratou-a como uma mulher idosa e frágil, com problemas de saúde, que agiu por um medo genuíno e paralisante, convencida de que Owens iria arrombar a sua porta para a matar. O seu argumento baseou-se na perceção subjetiva da ameaça, um elemento-chave da lei “Stand Your Ground”. Por outro lado, a acusação argumentou que Lorincz não agiu por medo, mas por raiva acumulada. Apresentaram como prova principal as gravações das suas chamadas para o 911, onde o seu tom era de raiva, não de pânico, e o facto de estar segura atrás de uma porta de metal fechada com múltiplos fechos. O procurador, Rich Buxman, colocou ao júri a questão central do caso: “Era razoável disparar através de uma porta fechada, trancada e segura?”.

No final, a história de Owens e Lorincz torna-se um microcosmo das tensões que fraturam os Estados Unidos: a divisão racial, a omnipresença da violência armada, a polarização política e um medo que pode ser manipulado e armado com consequências fatais.

Justiça, factos e datas

Após um julgamento que captou a atenção nacional, um júri composto por seis pessoas, todas brancas, considerou Susan Lorincz culpada de homicídio involuntário com uso de arma de fogo. Subsequentemente, foi condenada a 25 anos de prisão.

A cronologia precisa destes eventos é fundamental para compreender o caso na sua totalidade. O tiroteio que resultou na morte de Ajike “AJ” Owens ocorreu a 2 de junho de 2023. Susan Lorincz foi declarada culpada por um júri em agosto de 2024. A sentença de 25 anos de prisão foi proferida em novembro de 2024.

Antes do seu lançamento global, “A Vizinha Perfeita” iniciou um percurso de sucesso pelo circuito de festivais. Teve a sua estreia mundial no prestigiado Festival de Cinema de Sundance, onde Geeta Gandbhir foi galardoada com o Prémio de Realização na categoria de Documentário Americano, um reconhecimento à sua abordagem cinematográfica inovadora e poderosa. Pouco depois, a Netflix adquiriu os direitos de distribuição do filme, garantindo que esta importante história chegasse a uma audiência mundial.

“A Vizinha Perfeita” estreia na Netflix a 17 de outubro.

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