A Netflix estreia a série documental de três capítulos “Congonhas: Tragédia Anunciada”, que nos conta os pormenores do que aconteceu no aeroporto de Congonhas, em São Paulo, um evento que continua a ser o desastre aéreo mais mortal na história do Brasil e da América Latina.
O que aconteceu realmente naquele dia e o que causou o acidente? Foi uma falha humana?
A série aprofunda o catastrófico acidente do voo 3054 da TAM Airlines a 17 de julho de 2007. O acidente ceifou a vida das 187 pessoas a bordo do Airbus A320 e de 12 pessoas em terra, totalizando 199 vítimas mortais, deixando uma marca indelével na nação e no seu setor de aviação.
Esta docussérie de três partes, produzida conjuntamente nos EUA e no Brasil, promete um exame aprofundado da tragédia, explorando não só a sequência de eventos que levaram ao acidente, mas também as suas profundas consequências humanas, técnicas e políticas. O seu objetivo é investigar a cadeia de falhas que contribuíram para o desastre e analisar o seu impacto no contexto de uma crise mais ampla que afetava a aviação brasileira naquele momento.
A Docussérie: Desvendando a Tragédia
“Congonhas: Tragédia Anunciada” (originalmente intitulada “A Tragedy Foretold: Flight 3054” em inglês) é uma colaboração entre a Pródigo Filmes e a Sobretudo Produção, ambas produtoras brasileiras com experiência em documentários e longas-metragens narrativas. A Pródigo Filmes trabalhou em vários projetos, enquanto a Sobretudo Produção, sediada no Rio e dirigida pelos irmãos Angelo e Bárbara Defanti, é conhecida por levar a cultura brasileira para o ecrã, com trabalhos que incluem a longa-metragem O Clube dos Anjos (2022) e o documentário Verissimo (2024).
Angelo Defanti, conhecido pelo seu trabalho como escritor, realizador e produtor em projetos como O Clube dos Anjos e o documentário Verissimo, criou a série e realizou os três episódios. A série foi escrita por Defanti juntamente com Fábio Leal. Os produtores executivos incluem Beto Gauss, Francesco Civita, Bárbara Defanti e Renata Grynszpan.
A série adota um estilo narrativo de investigação, descrito como uma mistura de “emoção e rigor jornalístico”. Procura ir além das explicações simples, focando-se nos factos intrincados, no devastador custo humano para as famílias das vítimas e nas repercussões institucionais mais amplas. Para alcançar esta profundidade, a produção utiliza testemunhos de testemunhas oculares nunca antes vistos e documentos de arquivo.
Os temas chave entrelaçados ao longo da série incluem o impacto profundo e duradouro nas famílias que perderam os seus entes queridos, uma investigação detalhada das múltiplas falhas que contribuíram para o acidente e o exame das consequências humanas, técnicas e políticas que se desenvolveram depois. Em última análise, a série explora como este único evento deixou um impacto duradouro na história e na cultura de segurança da aviação brasileira.

Revisitando o Acidente: Uma Cadeia de Falhas
Na noite de 17 de julho de 2007, o voo 3054 da TAM Airlines, um Airbus A320-233 com matrícula PR-MBK, realizava um voo doméstico programado do Aeroporto Internacional Salgado Filho, em Porto Alegre, para o Aeroporto de Congonhas, em São Paulo. A aeronave transportava 181 passageiros e 6 membros da tripulação. A tripulação de voo era composta por dois capitães muito experientes: Henrique Stefanini Di Sacco, de 53 anos, com mais de 13.600 horas de voo, e Kleyber Aguiar Lima, de 54 anos, com mais de 14.700 horas. Um amigo recordou mais tarde o Capitão Di Sacco como uma das pessoas “mais agradáveis e felizes” que conhecera.
Ao aterrar na pista 35L de Congonhas durante uma chuva moderada, a aeronave tocou o solo, mas não conseguiu desacelerar normalmente. O vídeo de vigilância mostrou que se desviou para a esquerda e saiu do final da pista a uma velocidade de aproximadamente 90 nós (170 km/h ou 100 mph). A pista de Congonhas é elevada, e o impulso da aeronave levou-a a atravessar a movimentada Avenida Washington Luís que se encontrava por baixo. Em seguida, colidiu com um edifício de armazém de quatro andares da TAM Express, localizado ao lado de um posto de gasolina Shell, e explodiu violentamente, provocando um incêndio massivo.
O custo humano foi assustador. Todas as 187 pessoas na aeronave pereceram instantaneamente. Tragicamente, 12 pessoas que trabalhavam no edifício da TAM Express também morreram, elevando o número total de mortos para 199. Outras 27 pessoas em terra sofreram ferimentos. As vítimas representavam diversas nacionalidades, embora a maioria fosse brasileira.
A investigação oficial realizada pelo Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (CENIPA) do Brasil identificou o erro do piloto como causa principal. A informação do Gravador de Dados de Voo (FDR) revelou um erro crítico durante a aterragem. Imediatamente antes de tocar o solo, ambas as manetes de potência estavam na posição “CL” (subida). Um aviso automático de “retard, retard” soou dois segundos antes da aterragem, indicando aos pilotos para moverem as manetes para o ralenti para desativar o autothrottle (acelerador automático). No entanto, o FDR mostrou que apenas a manete de potência esquerda foi movida para a posição de reversa. A manete direita, que controlava o motor cujo inversor de potência tinha sido desativado devido a uma falha (um adiamento de manutenção aprovado), permaneceu na posição CL.
Esta ação teve múltiplas consequências críticas devido à lógica do sistema do Airbus A320. Puxar apenas uma manete para o ralenti desativou o sistema de autothrottle. Com a manete direita ainda em CL, o motor direito acelerou para potência de subida, enquanto o motor esquerdo acionou o seu inversor. Isto criou uma condição severa de impulso assimétrico, levando à perda de controlo. Além disso, os spoilers de solo do A320, cruciais para a travagem, são projetados para serem acionados automaticamente apenas quando ambas as manetes de potência estão em ou perto do ralenti. Como a manete direita não foi atrasada, os spoilers nunca foram acionados. O CENIPA teorizou que os pilotos podem não se ter apercebido da posição da manete direita, em parte porque, ao contrário de outras aeronaves, o sistema de autothrottle do A320 não move automaticamente as manetes físicas.
Embora a configuração incorreta da manete tenha sido o evento precipitante, o acidente é amplamente visto como um exemplo do “Modelo do Queijo Suíço” de causalidade de acidentes, onde múltiplas camadas de defesas falham simultaneamente.
Vários fatores criaram as condições para o desastre:
- Ação do Piloto: O erro crítico no manuseamento das manetes de potência durante a aterragem.
- Configuração da Aeronave: O inversor de potência desativado no motor direito, embora permissível, complicou o procedimento de aterragem, especialmente sob as condições específicas. Os procedimentos exigiam uma ação específica do piloto ao aterrar com um inversor inoperativo, que pode ter sido mal aplicada.
- Sistemas da Aeronave: A lógica específica dos sistemas de autothrottle e acionamento de spoilers do Airbus A320 desempenhou um papel na sequência de eventos.
- Ambiente do Aeroporto: A pista 35L de Congonhas era notoriamente desafiadora: curta, conhecida por ser escorregadia quando molhada e sem ranhuras após uma recente repavimentação, o que aumentava o risco de hidroplanagem. Não havia uma Área de Segurança de Fim de Pista (RESA) adequada, com uma avenida principal e edifícios imediatamente após o final da pista. Os pilotos tinham relatado más condições de travagem nos dias anteriores.
- Contexto Sistémico: O acidente ocorreu durante um período denominado a “crise da aviação” no Brasil, caracterizado por problemas operacionais generalizados.
Nenhum “buraco” único causou o acidente, mas o seu alinhamento permitiu que a tragédia se desenvolvesse. A intenção declarada da docussérie de investigar “cada falha na cadeia de eventos” sugere que provavelmente explorará esta complexa interação de fatores contribuintes.
Contexto e Consequências: A Crise da Aviação Brasileira e as Reformas de Segurança
O desastre do voo 3054 da TAM não ocorreu de forma isolada. Aconteceu durante um período turbulento para a aviação civil brasileira, muitas vezes denominado a “crise da aviação”. Este período viu meses de atrasos de voos a nível nacional, cancelamentos e crescentes preocupações sobre a infraestrutura de controlo de tráfego aéreo e a supervisão da segurança. O sistema já estava sob tensão após a colisão no ar do voo 1907 da Gol Transportes Aéreos em setembro de 2006, que tinha provocado greves e queixas dos controladores aéreos sobre as condições de trabalho.
As preocupações específicas sobre a pista principal do aeroporto de Congonhas, a 35L, estavam bem documentadas antes do acidente da TAM. O seu comprimento curto, localização numa área urbana densa e propensão para o deslizamento em condições húmidas eram perigos conhecidos. Um juiz chegou a tentar restringir as operações de aviões maiores em fevereiro de 2007 devido a preocupações de segurança, embora a decisão tenha sido revertida. Crucialmente, a pista tinha sido recentemente repavimentada, mas carecia do ranhuramento crucial necessário para ajudar a drenar a água e prevenir o hidroplanagem, trabalho que estava programado, mas ainda não concluído no momento do acidente.
A magnitude e o horror do acidente do Voo 3054 serviram como um catalisador brutal para a mudança, forçando as autoridades e a indústria a enfrentar problemas de longa data. O desastre provocou “importantes discussões sobre a segurança da aviação no Brasil”. Na sequência do acidente, foram implementadas mudanças tangíveis, incluindo a adição de ranhuramento à pista de Congonhas e ajustes aos procedimentos operacionais e potencialmente limitações no tamanho das aeronaves ou operações durante condições climáticas adversas.
O acidente deixou uma cicatriz duradoura na história da aviação brasileira, e as suas consequências continuam a moldar as discussões sobre a segurança das viagens aéreas no país. Embora a tragédia tenha impulsionado reformas, destacando a natureza muitas vezes reativa das melhorias de segurança impulsionadas por catástrofes, podem persistir perguntas sobre a responsabilização e a eficácia a longo prazo das mudanças implementadas. A docussérie está posicionada para explorar não só as reformas empreendidas, mas também, potencialmente, estas perguntas persistentes.
Onde assistir “Congonhas: Tragédia Anunciada”