‘Cover-Up’ na Netflix: Seymour Hersh e a arquitetura do silêncio

Cover-Up
Veronica Loop

Na vasta e mutável paisagem do discurso político americano, onde a natureza efémera das notícias digitais corrói frequentemente os alicerces da memória histórica, a chegada do novo documentário Cover-Up parece menos uma estreia cinematográfica e mais uma intervenção sísmica. Realizado pela cineasta vencedora de um Óscar, Laura Poitras, e pelo veterano produtor Mark Obenhaus, este filme abrangente, meticuloso e profundamente inquietante serve como um exame forense do impulso do aparelho de segurança americano para enterrar os seus atos mais sombrios. É uma obra que exige atenção não apenas pelo seu protagonista — o lendário e muitas vezes controverso jornalista de investigação Seymour Hersh — mas pela sua profunda meditação sobre a mecânica da verdade numa era cada vez mais definida pela ofuscação institucional e pela militarização das “fake news”.

O filme, que já captou uma atenção significativa após a sua estreia no Festival de Veneza e exibições no Festival de Cinema de Nova Iorque, ergue-se como um testamento à persistência necessária para arrastar a maquinaria do segredo de Estado para a luz. É um thriller político disfarçado de biografia, um drama processual que despe o “furo jornalístico” da sua mitologia romântica para revelar o trabalho extenuante, obsessivo e muitas vezes perigoso que sustenta o Quarto Poder. À medida que a narrativa se desenrola, tecendo cinco décadas de reportagens que vão dos arrozais do Vietname às câmaras de tortura de Abu Ghraib, Cover-Up força o seu público a confrontar uma tese arrepiante: que as atrocidades do passado não são aberrações, mas sim características sistémicas de uma potência imperial que aprendeu a esconder os seus crimes com crescente sofisticação.

Retrato do repórter enquanto velho

No centro desta tempestade encontra-se Seymour “Sy” Hersh, uma figura que, aos 88 anos, permanece tão incisiva, espinhosa e ferozmente fiel aos seus princípios como o jovem repórter que revelou a história do massacre de My Lai em 1969. O documentário adota uma abordagem comportamental ao retrato, evitando a reverência polida típica do género “cabeças falantes” em favor de um estilo cru e observacional que captura a energia “loquaz e por vezes rabugenta” do seu sujeito. Poitras e Obenhaus apresentam Hersh não como um santo cruzado, mas como um operacional implacável, um homem que usa a sua cautela como uma armadura e cujo “impulso feroz” para descobrir irregularidades roça o patológico.

A génese do filme é, em si mesma, uma história de persistência que espelha a própria metodologia de Hersh. Laura Poitras, cujos trabalhos anteriores como Citizenfour e Toda a Beleza e a Carnificina a estabeleceram firmemente como uma cronista proeminente do estado de vigilância e da responsabilidade institucional, abordou Hersh pela primeira vez sobre um documentário em 2005. Naquela altura, Hersh estava no meio da sua reportagem explosiva sobre o escândalo da prisão de Abu Ghraib para a revista The New Yorker, uma história que o tinha colocado mais uma vez na mira da administração Bush. Receoso de se tornar a notícia em vez do narrador, e protetor das fontes anónimas que lhe confiavam as suas vidas, Hersh “recusou educadamente”. Seriam necessárias quase duas décadas de negociação e a intervenção do correalizador Mark Obenhaus — um amigo de longa data e colaborador que tinha trabalhado com Hersh no filme Buying the Bomb — antes que o jornalista finalmente concordasse em abrir os seus arquivos e sentar-se diante da câmara.

Esta admissão transparente da luta pelo acesso serve como a jogada de abertura do filme, sinalizando imediatamente ao espectador que a confiança é uma moeda que deve ser conquistada, negociada e guardada ciosamente. O Hersh que emerge deste processo é uma figura complexa: um “lobo solitário” que, no entanto, depende de uma vasta rede de editores, verificadores de factos e fontes confidenciais; um homem que desconfia de tudo, inclusive dos cineastas que documentam a sua vida. Num dos momentos mais reveladores do filme, Hersh é mostrado no seu escritório, um espaço descrito por Poitras como uma “máquina do tempo”, empilhado com blocos de notas amarelos que desafiam a gravidade e pilhas de documentos classificados. Este arquivo caótico é a manifestação física do seu cérebro — um repositório de segredos que homens poderosos matariam para manter enterrados.

Cover-Up
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Os anos de formação: Das ruas de Chicago ao Pentágono

Cover-Up dedica um espaço narrativo significativo à história de origem de Hersh, argumentando que o seu ethos jornalístico único não foi forjado nas instituições de elite da Ivy League, mas na realidade arenosa e corrupta da Chicago de meados do século. Filho de imigrantes judeus da Europa de Leste, Hersh cresceu a ajudar o pai a gerir uma lavandaria e tinturaria, um ambiente de classe trabalhadora onde aprendeu a competência essencial de “como falar com as pessoas”. Essa capacidade de se ligar a indivíduos de todas as esferas da vida — do cliente da lavandaria ao general de quatro estrelas — tornar-se-ia o seu superpoder.

O filme traça a sua evolução de estudante numa faculdade de dois anos, onde um professor de inglês reconheceu o seu talento, até à sua matrícula na Universidade de Chicago e ao seu subsequente emprego no lendário City News Bureau. Foi aqui, a trabalhar como repórter policial, que Hersh “se apaixonou por ser repórter”. O documentário postula que a cobertura policial de Chicago foi o campo de treino perfeito para cobrir o Pentágono. Navegar pela “cena da máfia” da cidade e testemunhar a corrupção policial em primeira mão ensinou-o a “ver a tirania de perto” e incutiu nele um profundo ceticismo em relação às narrativas oficiais. Ele aprendeu cedo que as figuras de autoridade mentem, que os relatórios policiais são frequentemente ficções e que a verdade é geralmente encontrada nas margens, sussurrada por aqueles com a consciência pesada.

Esse instinto das ruas provou ser devastadoramente eficaz quando aplicado ao palco nacional. Cover-Up detalha como, durante a Guerra do Vietname, Hersh desenvolveu uma metodologia pouco ortodoxa para cultivar fontes dentro do establishment militar. Enquanto os seus pares no corpo de imprensa compareciam obedientemente aos briefings do Pentágono para serem alimentados com a propaganda diária, Hersh deambulava pelos corredores, à procura de oficiais que parecessem desiludidos ou sobrecarregados pelo que sabiam. Ele desenvolveu a técnica de convidar oficiais de alta patente para almoçar em ambientes descontraídos, onde simplesmente “saía do caminho” e os deixava falar. Esse “sentido comportamental” — saber quando pressionar e quando ouvir — permitiu-lhe penetrar a muralha de silêncio que cercava a máquina de guerra dos EUA.

A anatomia de um massacre: My Lai e a quebra do silêncio

O tratamento do documentário sobre o massacre de My Lai é uma aula magistral de reconstrução histórica. Leva o espectador de volta a 1969, um ano crucial em que o movimento anti-guerra ganhava força, mas a escala total do horror no Vietname ainda estava amplamente oculta do público americano. Hersh, então um freelancer para o incipiente Dispatch News Service, revelou a história de que tropas do Exército dos EUA haviam massacrado sistematicamente centenas de civis vietnamitas desarmados na aldeia de My Lai.

Cover-Up não se limita a relatar os factos do massacre; dramatiza a “minuciosidade” da investigação. Os espectadores são guiados através do processo de como Hersh localizou o tenente William Calley, o oficial acusado das mortes, e como encontrou os soldados que haviam participado na carnificina. O filme destaca a “obsessão” necessária para montar tal história quando todo o aparelho militar está orientado para a supressão. A reportagem de Hersh fez mais do que expor um crime de guerra; estilhaçou o mito da superioridade moral americana e galvanizou a oposição global à guerra. O filme usa este segmento para estabelecer o seu arco temático central: que a exposição de tais atrocidades nunca é um acidente, mas o resultado de uma luta deliberada, muitas vezes solitária, contra uma instituição projetada para se proteger a todo o custo.

Watergate: Os assaltantes, o suborno e a Casa Branca

Embora a narrativa do escândalo Watergate seja frequentemente dominada pelas figuras de Bob Woodward e Carl Bernstein, Cover-Up reivindica o papel fundamental de Seymour Hersh na queda da presidência de Nixon. O documentário recorda-nos que Watergate não foi uma história monolítica propriedade de um único jornal, mas uma feroz guerra competitiva entre jornalistas.

Através de entrevistas e imagens de arquivo, o filme detalha a reportagem de Hersh para o The New York Times, especificamente o seu foco nos “canalizadores” (os plumbers) — a equipa de assaltantes paga para executar a invasão na sede do Comité Nacional Democrata. O correalizador Mark Obenhaus explica que foi Hersh quem ligou os pontos em relação ao dinheiro do suborno, revelando que os assaltantes ainda estavam a ser pagos mesmo após a sua acusação. Esta peça crucial de reportagem implicava que eles estavam na folha de pagamentos do Comité para a Reeleição do Presidente, ligando assim o roubo diretamente à Casa Branca e ao Partido Republicano muito antes que a dimensão total da conspiração fosse compreendida.

Esta secção do filme serve como um poderoso corretivo ao registo histórico, ilustrando a “tenacidade” que definia a abordagem de Hersh. Também sublinha o argumento mais amplo do filme sobre a natureza do poder: que a corrupção raramente é obra de elementos isolados, mas é quase sempre orquestrada de cima para baixo. O trabalho de Hersh no Watergate, combinado com a sua reportagem sobre o bombardeamento secreto do Camboja e o programa de espionagem doméstica da CIA, pinta um retrato de um governo em guerra com a sua própria constituição — um tema que ressoa de forma perturbadora com os dias de hoje.

O estado de vigilância: Das ‘Joias da Família’ à Guerra ao Terror

A exploração do documentário sobre o programa de espionagem doméstica da CIA, que Hersh expôs em 1974, fornece uma ponte temática para a própria obra de Laura Poitras. A revelação de Hersh de que a CIA andara a conduzir vigilância ilegal sobre ativistas anti-guerra e outros grupos dissidentes — um escândalo que levou à formação do Comité Church e da Comissão Rockefeller — é apresentada com um estilo visual e sonoro distinto. Os cineastas utilizam o ruído de fita e a estática de gravações de arquivo para evocar a textura da vigilância, criando uma “linguagem passado-futuro” que liga a espionagem analógica dos anos 1970 ao panóptico digital do século XXI.

Esta continuidade do abuso estatal culmina no exame angustiante do filme sobre o escândalo da prisão de Abu Ghraib. Em 2004, escrevendo para a The New Yorker, Hersh expôs a tortura sistemática e o abuso de prisioneiros pelas forças americanas no Iraque. O documentário apresenta o depoimento de Camille Lo Sapio, uma das fontes anteriormente anónimas de Hersh, que lhe forneceu as fotografias gráficas que chocaram o mundo. Essas imagens — de prisioneiros nus empilhados em pirâmides, de figuras encapuzadas de pé sobre caixas — são revisitadas não pelo seu valor de choque, mas para demonstrar a necessidade de prova visual num mundo pós-verdade. Hersh observa que, sem as fotografias, a história provavelmente teria sido descartada como propaganda inimiga.

Poitras, que descreveu o seu próprio “estado de desespero” sobre o colapso do jornalismo durante a era pós-11 de setembro, enquadra a reportagem de Hersh sobre Abu Ghraib como um farol solitário de dissidência numa paisagem mediática que tinha aquiescido largamente à narrativa do governo. O filme argumenta que Hersh foi uma das poucas vozes dispostas a questionar a “Doutrina Bush” e a “ocupação horrível” do Iraque, provando que o papel do jornalista de investigação é destacar-se da alcateia, mesmo quando isso convida a acusações de ser “anti-americano”.

A linguagem cinematográfica da paranoia

Visualmente, Cover-Up é um tour de force de tensão atmosférica. Poitras e Obenhaus, trabalhando com diretores de fotografia como Mia Cioffi Henry, criaram um filme que parece e soa como um thriller político de alto risco. O jogo de cenas “estilo Pakula” — referenciando os thrillers paranoicos de Alan J. Pakula como Os Homens do Presidente e A Última Testemunha — infunde o documentário com uma sensação de pavor e inquietação. A montagem, a cargo de uma equipa que inclui Poitras, Amy Foote e Peter Bowman, evita uma cronologia estritamente linear em favor de uma estrutura temática que salta no tempo, ligando os testes de armas químicas dos anos 1960 com as alegações de guerra química da Guerra Civil Síria.

A sequência de abertura do filme é particularmente impressionante: apresenta imagens de uma reportagem de 1968 no Utah, onde um teste de agente nervoso do Exército dos EUA no Campo de Testes de Dugway correu mal, matando milhares de ovelhas. Esta imagética de “imprudência institucional” e a morte silenciosa e invisível que paira sobre a paisagem define o tom de todo o filme. É uma metáfora visual para os danos colaterais do estado de segurança — as vidas inocentes (sejam ovelhas ou civis) que são sacrificadas no altar da segurança nacional.

A sonoplastia amplifica ainda mais essa imersão. Numa sequência que retrata Hersh a trabalhar na sua reportagem sobre a Guerra do Iraque, o som mundano da sua escrita no teclado é sobreposto ao som rítmico e sincopado das hélices de um helicóptero. Essa sobreposição sonora colapsa a distância entre a secretária do repórter em Washington, D.C., e a zona de guerra em Bagdade, lembrando ao espectador que as palavras no ecrã têm consequências letais no mundo real. É uma técnica que transforma o ato de escrever num ato de guerra.

O lobo solitário e a alcateia: Dinâmicas colaborativas

Embora Hersh seja a estrela indiscutível do filme, Cover-Up também lança luz sobre a natureza colaborativa da realização de documentários. A parceria entre Poitras e Obenhaus é apresentada como uma síntese necessária de estilos e temperamentos. Poitras, a artista radical e ativista, traz a sua sofisticação visual e a sua obsessão temática pela vigilância. Obenhaus, o produtor veterano que navegou pela indústria durante décadas, fornece a mão firme e a ligação pessoal com Hersh que tornaram o filme possível.

Obenhaus relata o desafio de lidar com a “teimosia” e as “mudanças de humor” de Hersh, observando que ele ficou “zangado comigo tantas vezes que não conseguiria contar”. No entanto, a afeição dos cineastas pelo seu tema é palpável. Eles tratam-no não apenas como um objeto de estudo, mas como um parente muito amado, ainda que difícil. Essa intimidade permite momentos de vulnerabilidade genuína, como quando Hersh, percebendo que revelou acidentalmente a identidade de uma fonte aos realizadores, ameaça interromper a produção. Essas cenas de “dúvida e hesitação” são cruciais, pois revelam o alto risco do jogo que Hersh joga. Para ele, proteger uma fonte não é apenas uma obrigação profissional; é um imperativo moral que supera as exigências do filme.

A controversa carreira tardia: Síria, Nord Stream e a natureza do erro

Um documentário sobre Seymour Hersh estaria incompleto sem abordar as controvérsias que definiram a sua carreira tardia. À medida que a paisagem mediática mudou em direção à inteligência de fontes abertas e ao jornalismo de dados, a dependência de Hersh em fontes anónimas singulares atraiu escrutínio e críticas crescentes. Cover-Up não foge a esses “problemas de credibilidade”.

O filme aborda de frente a reportagem de Hersh de 2013 sobre os ataques com armas químicas em Ghouta, na Síria, onde ele alegou que as forças rebeldes, e não o regime de Assad, eram responsáveis. Essa reportagem foi amplamente contraditada por investigadores da ONU e outros pesquisadores, levando a acusações de que Hersh se tinha tornado um teórico da conspiração ou um apologista de ditadores. Num momento de franqueza surpreendente, o documentário captura Hersh a admitir o seu erro em relação a Assad. “Vamos chamar a isso um erro. Vamos chamar a isso um erro muito grande”, diz ele, retirando as suas alegações anteriores de infalibilidade. Essa admissão é um momento crucial no filme, isolando-o de acusações de hagiografia e reforçando o seu compromisso com a verdade, mesmo quando essa verdade é pouco lisonjeira para o seu protagonista.

O documentário também explora o relatório de Hersh de 2023 alegando que os Estados Unidos e a Noruega foram responsáveis pela sabotagem dos gasodutos Nord Stream. Embora essa história tenha sido recebida com ceticismo generalizado pela grande imprensa e contraditada por investigações alemãs que apontavam para um grupo pró-ucraniano, o filme apresenta-a como evidência da recusa contínua de Hersh em aceitar o “registo oficial como evangelho”. Os cineastas não endossam necessariamente a veracidade da alegação sobre o Nord Stream, mas usam-na para ilustrar o “caminho de guerra” duradouro de Hersh contra o establishment. Isso levanta a questão desconfortável de se Hersh é um “excêntrico” ou se ele é simplesmente o único corajoso o suficiente para fazer as perguntas que mais ninguém fará.

A receção crítica: Um espelho para os media

Desde a sua estreia, Cover-Up polarizou os críticos de uma maneira que reflete a natureza polarizada do seu tema. Muitos aclamaram-no como um documentário “urgente e necessário”, elogiando o seu “retrato rigoroso da busca pela verdade” e a sua capacidade de capturar a “obsessão” do processo de investigação. A crítica no RogerEbert.com concede ao filme uma avaliação matizada, destacando o seu sucesso como um “retrato comportamental”, embora note que pode não atingir as “alturas críticas” da obra-prima de Poitras, Toda a Beleza e a Carnificina.

A revista Time ressalta a importância cultural do filme, observando que, numa era onde os jornalistas são demonizados e o conceito de verdade está sob ataque, Cover-Up serve como um lembrete vital do “papel crítico que a reportagem de investigação contundente desempenha numa democracia”. Outros críticos acharam o filme “difícil de ver” devido à sua representação inabalável da violência institucional, mas, em última análise, recomendaram-no como uma visualização essencial. A divergência de opinião sobre as reportagens de fim de carreira de Hersh espelha o debate mais amplo dentro da comunidade jornalística sobre o equilíbrio entre acesso e verificação, e os perigos de depender de fontes anónimas numa era de desinformação.

O desmancha-prazeres

Em última análise, o filme apresenta Seymour Hersh como o eterno “penetrável inconveniente” na festa — o convidado indesejado que se recusa a aderir às ficções educadas da elite de Washington. O filme argumenta que esse papel não é apenas uma peculiaridade pessoal, mas uma necessidade democrática. Num sistema onde o poder procura naturalmente proteger-se do escrutínio, o único antídoto é um jornalista disposto a ser rude, abrasivo e implacável.

O documentário deixa o espectador com uma profunda sensação da fragilidade da verdade. Hersh, cercado pelos detritos de uma vida de reportagens, continua a trabalhar, publicando as suas descobertas no Substack porque os guardiões tradicionais dos media tornaram-se cautelosos com os seus métodos. O filme termina não com uma volta de vitória, mas com um ponto de interrogação. Quem assumirá o manto quando Hersh se for? Numa era de consolidação empresarial e feeds de notícias algorítmicos, ainda há lugar para o lobo solitário disposto a passar meses a perseguir uma pista que pode não levar a lugar nenhum?

As implicações globais da impunidade americana

Embora Cover-Up esteja profundamente enraizado nas especificidades da história americana, a sua ressonância é global. O filme retrata os Estados Unidos como uma potência imperial cujos “ciclos internos de impunidade” têm consequências devastadoras para o resto do mundo. Das aldeias do Vietname aos gasodutos do Mar Báltico, o documentário mapeia a pegada do poder americano e o silêncio que frequentemente segue a sua implantação.

O lançamento do filme numa plataforma de streaming global garante que essa crítica será ouvida em mais de 190 países. Isso é significativo, pois permite que o público internacional testemunhe uma crítica interna do poder americano feita por cineastas americanos. Desafia a narrativa monolítica da benevolência dos EUA frequentemente projetada no estrangeiro, oferecendo, em vez disso, uma visão matizada e dolorosa de uma nação a lutar com a sua própria consciência.

O futuro da forma

Para Laura Poitras, Cover-Up representa uma continuação do seu projeto de carreira de documentar os abusos do mundo pós-11 de setembro. Ao voltar a sua lente para Hersh, ela reconhece uma dívida de gratidão para com a geração de jornalistas que pavimentou o caminho para o seu próprio trabalho. O filme sugere que a tocha foi passada, não apenas para outros jornalistas, mas para documentaristas que estão a preencher cada vez mais o vazio deixado pelo declínio da reportagem de investigação tradicional.

A “maquinaria” do filme — a sua montagem, a sua sonoplastia, a sua pesquisa de arquivo — demonstra que a própria forma documental tornou-se um veículo primário para dizer a verdade. À medida que os jornais encolhem e os orçamentos são cortados, filmes como Cover-Up fornecem o tempo, os recursos e a plataforma necessários para contar histórias complexas e difíceis. É um lembrete de que, na batalha pela história, a câmara é uma arma tão poderosa quanto a caneta.

Um apelo ao testemunho

Cover-Up é um filme exigente. Pede ao seu público que conviva com verdades desconfortáveis, testemunhe as horríveis consequências das ações do seu governo e questione as narrativas com as quais é alimentado pelos grandes media. É um filme que se recusa a oferecer respostas fáceis ou resoluções reconfortantes. Em vez disso, oferece o exemplo de Seymour Hersh: um homem que, apesar das suas falhas e erros, nunca parou de escavar.

Conforme os créditos sobem, o espectador é deixado com a imagem do escritório “máquina do tempo”, as pilhas de papel e o velho homem ainda ao telefone, ainda a perseguir a história. É uma imagem poderosa e duradoura de resistência. Num mundo onde a verdade está constantemente sob cerco, o documentário afirma que a única maneira de ripostar é nunca parar de fazer perguntas, nunca confiar na história oficial e sempre, sempre seguir o dinheiro.

Para aqueles prontos para descer nessa toca do coelho de segredos e mentiras, Cover-Up está disponível para um público global via Netflix a partir de hoje.

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