O fascínio é inegável: milhares de milhões de visualizações, milhões de seguidores e fortunas construídas a partir de vídeos online aparentemente lúdicos. O fenómeno dos “kidfluencers” transformou-se numa indústria multimilionária de publicidade nas redes sociais, onde as crianças se tornaram algumas das personalidades mais procuradas e bem pagas da internet. Para muitos jovens, ser uma estrela do YouTube ou TikTok é agora mais desejável do que aspirações tradicionais como ser astronauta. Contudo, por baixo do verniz brilhante dos desafios virais, das caixas de brinquedos e dos momentos familiares, pode esconder-se uma realidade mais sombria.
O Caso Exposto por “Má Influência: Quando as crianças são influencers”
A série documental “Má Influência” da Netflix, dividida em três partes, foca-se no caso mediático de Piper Rockelle, uma popular personalidade adolescente do YouTube, e nas perturbadoras acusações que envolvem a sua mãe e gestora (“momager”), Tiffany Smith. Através de relatos pungentes de antigos colaboradores, o documentário explora alegações de exploração, manipulação e abuso, levantando questões urgentes sobre ética, regulação e o custo humano de transformar a infância em conteúdo online.
A série documenta a ascensão de Piper Rockelle ao estrelato na internet, construída com base em partidas elaboradas, desafios virais e “conteúdo de namoro” com o seu grupo de amigos jovens, conhecido como “The Squad”. Testemunhos de vários membros do grupo revelam um padrão de manipulação e abuso. Alegaram estar frequentemente sujeitos a um ambiente emocional e fisicamente abusivo, orquestrado por Tiffany Smith, dentro e fora do set durante as gravações para o canal de YouTube de Piper. Estas alegações culminaram num processo judicial.
Embora o caso tenha sido resolvido através de um acordo financeiro substancial, este foi assinado “sem admissão de responsabilidade ou da validade ou invalidade de qualquer reclamação ou defesa”. Esta resolução legal, apesar de encerrar a batalha judicial, deixa as acusações sem resposta pública, permitindo que as partes acusadas continuem as suas operações comerciais sem uma declaração legal de culpa. “Má Influência” serve, assim, como uma contra-narrativa, amplificando as vozes dos acusadores cujas queixas foram resolvidas fora dos tribunais.
O Recreio Multimilionário: Compreender o Fenómeno
O caso de Piper Rockelle insere-se no contexto de uma indústria de crianças influenciadoras em franca expansão. Descrito como um fenómeno empresarial de rápido crescimento, representa um segmento significativo do mercado publicitário das redes sociais, avaliado em milhares de milhões. Os principais influenciadores infantis podem alcançar rendimentos impressionantes; Ryan Kaji, de “Ryan’s World”, terá alegadamente ganho valores na ordem dos muitos milhões, enquanto o canal de Piper Rockelle terá gerado centenas de milhares de dólares por mês no seu auge. Influenciadores com mais de um milhão de seguidores podem ganhar dezenas de milhares de dólares por uma única publicação patrocinada.
Este ecossistema lucrativo prospera principalmente em plataformas como YouTube, TikTok e Instagram. Uma vez que a maioria das plataformas exige que os utilizadores tenham pelo menos 13 anos, as contas com crianças mais novas são geralmente criadas e geridas pelos pais. As fontes de receita incluem pagamentos diretos de marcas por conteúdo patrocinado, uma parte das receitas de publicidade geradas pelas plataformas e vendas de artigos de marca.
Os pais são cruciais nestes empreendimentos, criando negócios em torno da simpatia percebida dos seus filhos e das suas atividades online. Isto cria uma tensão inerente: o pai atua simultaneamente como cuidador, com o dever de proteger o bem-estar da criança, e como gestor de negócios, impulsionado por incentivos financeiros e exigências de conteúdo. As imensas recompensas financeiras podem criar uma forte atração, levando potencialmente a situações em que o bem-estar da criança fica em segundo plano face às pressões da criação de conteúdo e da geração de lucros – uma dinâmica central nas acusações exploradas em “Má Influência”.
O Campo Minado Ético do “Kidfluencing”
A ascensão do “kidfluencing” força um confronto com questões éticas complexas. Um debate central gira em torno de saber se esta atividade constitui trabalho infantil. Os defensores argumentam que se trata apenas de “monetizar as brincadeiras existentes das crianças”. Os críticos, no entanto, apontam para a natureza estruturada da criação de conteúdo, as obrigações contratuais e os significativos compromissos de tempo como indicadores de trabalho. O “kidfluencing” opera frequentemente numa “zona cinzenta” regulatória, fora do âmbito das leis tradicionais sobre trabalho infantil, especialmente porque o trabalho é realizado em casa e gerido pelos pais.
Para além do trabalho, existem preocupações profundas sobre os direitos fundamentais das crianças:
- Consentimento e Privacidade: Podem as crianças pequenas dar consentimento informado e contínuo para a divulgação global de detalhes íntimos das suas vidas? A lei exige o consentimento dos pais, mas estes têm frequentemente um interesse financeiro direto na partilha, criando um conflito de interesses. Esta prática, conhecida como “sharenting”, cria uma pegada digital permanente e expõe as crianças a potenciais perigos online.
- Impactos Psicológicos: Especialistas alertam para as potenciais consequências psicológicas: pressão constante para performar, perda de privacidade, exposição a negatividade online e o sacrifício de experiências normais da infância podem afetar a saúde mental e a formação da identidade. O stress elevado pode levar ao esgotamento.
- Mercantilização da Infância: O “kidfluencing” arrisca transformar crianças e as suas experiências em produtos. As crianças tornam-se “capital digital”, com a sua vulnerabilidade explorada para lucro comercial. Análises à luz da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança sugerem potenciais infrações aos direitos à privacidade, liberdade de expressão e proteção contra exploração económica e danos.
Regulação na Era Digital: Uma Resposta Necessária
Durante anos, a indústria funcionou com supervisão mínima. As leis existentes sobre trabalho infantil, como a Lei de Normas Justas de Trabalho (FLSA) nos EUA, muitas vezes não se aplicam devido a isenções para artistas ou crianças empregadas pelos pais. A natureza do trabalho dificulta a fiscalização tradicional. No entanto, a crescente consciencialização está a impulsionar a ação legislativa.
França: Assumiu a liderança global com leis que tratam as crianças influenciadoras menores de 16 anos de forma semelhante a crianças atrizes. Exige autorização governamental, limita as horas de trabalho, obriga a que a maior parte dos ganhos seja depositada numa conta fiduciária e concede às crianças o “direito ao esquecimento”, permitindo-lhes solicitar a remoção de conteúdo. Leis posteriores reforçaram a proteção, exigindo rotulagem clara de publicidade, proibindo a promoção de produtos de risco e responsabilizando os influenciadores. Uma lei mais recente foca-se nos riscos do “sharenting”, reforçando o direito das crianças à privacidade e à imagem.
Estados Unidos: As medidas têm sido fragmentadas, focando-se principalmente na proteção financeira, muitas vezes expandindo as “leis Coogan” existentes, que exigem que uma percentagem dos ganhos de uma criança atriz seja reservada.
- Datas Relevantes: O acordo judicial no caso Rockelle foi alcançado em outubro de 2024. A lei de Illinois (SB 1782) entrou em vigor em julho de 2024. As leis da Califórnia (AB 1880 e SB 764) entraram em vigor em janeiro de 2025. Existem projetos de lei semelhantes a serem discutidos noutros estados como Arizona, Georgia, Maryland, Missouri, Ohio, Pensilvânia, Rhode Island e Washington. Minnesota também aprovou legislação semelhante. Estas datas marcam passos importantes na tentativa de regular esta indústria em rápida evolução.
Onde assistir “Má Influência: Quando as crianças são influencers”